18 dezembro 2006

Sulitania

Quando passarem pelo Vimieiro com vagar , parem pra beber um copo e comer uns petiscos, um espaço muito muito agradável.
Precurem que qualquer um diz onde é a taberna

Aqui fica a introdução do seu criador; Joaquim Pulga:

"Ainda hoje revivo amiúde o gesto gaiato de franzir o rosto diante do prato da sopa. Dizia a mãe que eu era moço de má boca. De boca desejosa de eternizar as guloseimas dos dias de festa como todas as outras bocas que não nasceram na abundância, digo eu. Mas a tesouraria da gerência era a que era e, perante o forçoso equilíbrio na gestão, desde a linha de partida que conheço os cantos à agora endeusada cozinha transtagana da necessidade. Não que a mãe não soubesse de outras podas culinárias, sabia e era mestra, mas o equilíbrio na balança de recebimentos/pagamentos justificava a poupança na despensa. E lá fui medrando à conta de sopas mal engolidas, entremeadas, é certo, de outros acepipes mais domingueiros. Entretanto, enquanto espigava, cirandava a curiosidade pelos detalhes da vida adulta. Dentre eles, não resta a menor dúvida da aposta na taberna como um dos lugares que tresandava a academia da vida. Tal como o pensei na altura, assim o grafei há uns pares de luas atrás.“Na Grécia antiga a taberna dava pelo nome de Kapêleion e os taberneiros de Kápelos. O vinho, razão primeira da existência das tabernas, mereceu do poeta grego Alceu para a posteridade:É preciso não entregar o coração ao infortúnio./Nada lucraremos, ó Bíquis, com tristezas. /O melhor remédio é pedir vinho e embriagar-nos.Os Romanos frequentavam-nas com entusiasmo, como se de lugares de culto se tratasse. Para eles, eram poiso de conversa e boa disposição, de abrigo e refúgio, de comidas e vinho que, generoso, corria a rodos. Muitos foram os autores romanos a quem nunca doeram as mãos e a pena na sua celebração. Plauto, Horácio, Cícero e Tito Lívio que, certamente, entre outros, se refugiaram na sua penumbra apelando às Musas.Na Idade Média continuaram a ser templos de convívio e satisfação. Nelas, continuou a jorrar vinho para poetas, jograis, e goliardos, saltimbancos e vagabundos, cavaleiros e soldados, frades e peregrinos, camponeses e artesãos. Foram frequentadores seus que escreveram os magníficos Carmina Burana. Nelas, se conspirou e delas saíram revoluções e regicídios. Nelas, encontraram conforto os inúmeros desprezados da sorte daqueles tempos.Omar Khayyam, cidadão da Pérsia muçulmana, homem sábio, culto e crítico, astrólogo, matemático e geómetra, que com a normalidade dos amantes do prazer, prezou o convívio das mulheres, das tabernas e do vinho, deixou-nos na forma de poema, o seu elogio:O nosso tesouro? O vinho. / O nosso palácio? A taberna. / Os nossos fiéis companheiros? A sede e a embriaguês. / Ignoramos a inquietude, porque sabemos que as nossas almas, corações e taças e as nossas roupas maculadas nada têm a temer do pó, da água e do fogo.As tabernas foram para mim a curiosidade da infância e a academia da adolescência. A taberna do Armando, do Nabo, do Quintaneiro, do Praça, do Carranca, sítios que atentatóriamente foram convertidos em baiucas de mau gosto, onde reina a falsa modernidade do espelhinho, do alumínio e da fórmica, foram escolas onde percebi dos méritos e dos malefícios da vida. Lugares onde estabeleci amizades e aprendi a maldizer, onde discuti o relativo e o absoluto, onde com reverência escutei do saber e do fazer, onde fui iniciado nos prazeres do vinho e do petisco.” (...)Logo que os caminhos da vida deram para andar pelas pernas minhas, parti à descoberta de outros lugares. E foram anos e anos de mal (bem, magnificamente bem!) andar pelos costumes de outras gentes. A bem dizer, sempre pelos trilhos do sul. Desse sul bamboleado que por bem ajuntou fantasia ao temperamento do meu sul austero. E descansei. Descansei por uns bons pares de anos nas bordas do Índico e nos matos que pelas terras adentro se vão.Vale a pena ajuntar a este relambório o mester em que ocupei o tempo, um substancial naco do tempo que já levo de siso. Por bem empregue, labutando pelo conforto do mundo rural. Do mundo rural onde igualmente labutaram os meus antepassados. Vale também dizer que, à laia de consolo de emigra, me fui crescentemente filando à arte dos tachos e panelas. Depois tal e qual o Cambaco (elefante velho), retornei às terras da minha adorada transtagânea. E por aqui continuei a insistir mais um ror de anos que a matriz da vida está nos lugares onde se lavra, semeia e colhe - guerra inglória esta, num tempo virado do avesso em que a rapaziada quer é saltar para dentro dos ajuntamentos de gavetas da propriedade horizontal.Tudo tem o seu tempo, e o subversivo oficiar no desenvolvimento rural foi sendo paulatinamente imerso pelas baias redutoras dos poderes. Foi perdendo o salutar à margem entre um crescendo de tanganhadas e reverências pelos poiais dos gabinetes dos directores gerais de tudo e mais alguma coisa. Começou a desfalecer-me a querença no ofício paralelamente ao crescimento da paixão pela talha e pela sertã. Até que, um dia, acordei com o desejo de tomar de renda uma respeitável taberna, ali no fundo da rua das Portas de Moura, encolhida junto da muralha, mesmo no cerne da mouraria bejense. O desejo bejense acabou por ir-se nas teias que a vida entretanto teceu, mas ficou o bicho da vontade.Bastas enxurradas passaram por debaixo das pontes. Mais umas arrobas de bacalhoadas distribuídas a pataco pelos corredores dos poderes. Até que, um belo dia, o Zé Det sentenciou: antes que endoides de vez, agarra no casão da minha mãe e monta a porra da taberna.E pronto, na companhia societária da minha companheira Maria José, da Maria Fernanda e da Maria Paola – um chaparro minoritário e três Marias & tárias – a Sulitânia está de partida para a aventura dos comes-e-bebes.
Do livro de bordo da Sulitânia Casa de comes-e-bebes